Análise
da composição do curta-metragem KM 58
No
curta-metragem alagoano KM 58, dirigido por Rafhael Barbosa, serão analisados
aspectos técnicos, pois neles estarão intrínsecas as intenções do diretor. Com
base nessa metodologia de análise se desdobrarão as atitudes do personagem
principal, as características do cenário, o peso significativo dos objetos,
etc. Porém, tal avaliação cinematográfica não omitirá a sua gênese no seio da
fotografia.
Os
segundos iniciais do road-movie são marcados pela aparição do fogo, logo em
seguida a cena é cortada para a estrada que se caracteriza pelo ponto de fuga, ou
seja, a estrada possui linhas que convergem em um único ponto (Machado 1984, p.
68). Em subsequência mostra-se o retrovisor
lateral, que carrega aspectos luminosos entrando em deformidade no espelho, há
um código de leitura lumínico. Dentro do carro o ângulo de visão está normal e Miguel,
o protagonista, se encontra neutro na situação com um olhar agitado. Ao ser
filmado por fora, ele assume uma posição frontal à câmera. Porém ao estacionar
o automóvel, em close-up as suas expressões
e seus gestos (ao colocar a mão sobre o rosto, de forma a pressionar os olhos
cansados) reafirmam sua inquietude. Já em plano detalhe, com a mão do
personagem sobre o joelho surge uma mão que não é a dele e começa a
acariciá-lo, como se a mesma tentasse tranquilizá-lo ou o gesto denotasse um
sentimento de saudade. Vale ressaltar que Miguel usa uma aliança, esse objeto é
representativo, carregado de uma ideologia. E uma ideologia dominante, a
religiosa. A aliança exprime a ideia do compromisso matrimonial. Diante desse
aspecto encontrado no curta-metragem pode ser feita uma ponte com a ideia de
Arlindo Machado:
(...) a ideologia aparece, numa primeira
aproximação mais rasteira, como o sistema das representações de que se valem os
homens para se dar conta das relações materiais (naturais e sociais) em que se
acham mergulhados. (MACHADO, 1984, p. 12)
No decorrer da cena, a segunda mão sai da
situação devido ao som da sirene, provavelmente, sirene policial. E a luz vermelha penetra no espaço
enquadrado. A mão do protagonista segura fortemente o tecido da sua roupa, como
se a mão reagisse de maneira rancorosa à presença do som da sirene. Em
primeiríssimo plano, a cabeça dele gira em direção a sirene. Um código de
leitura da imagem que caracteriza bem esse aspecto é chamado de gestual e
cenográfico, visto que, o telespectador observa o gesto do referente, mas não
sabe qual objeto ou situação causou esse gesto. Com um olhar de cima para
baixo, em plongée, é possível
visualizar em plano conjunto o local em que o protagonista, agora, se encontra:
um posto de gasolina. Devido a esse tipo de enquadramento identificamos com
mais facilidade os personagens e as suas movimentações no cenário. Do plano
conjunto para o plano detalhe: a gasolina sendo colocada em uma garrafa PET,
mas qual seria a finalidade? O diretor quer indicar outra situação e faz com
que o telespectador indague sobre. Já que, o carro será abastecido, ele
utilizará a gasolina da garrafa para outra finalidade. Inclusive, é emitido um som forte de líquido
corrente durante o abastecimento do automóvel. E esse som faz a ligação com a
passagem de cena. Agora, o protagonista se encontra vomitando no banheiro.
No
banheiro, ele se dirige para a pia e assea o rosto. Ao se olhar no espelho, o
enquadramento neutro aponta a ideia pela procura de uma estabilidade moral. A
câmera se posiciona de uma maneira neutra, porém diagonal para não prejudicar a
cena do personagem no espelho (pois há chances da câmera sair refletida no
espelho), dessa forma não compromete o efeito do curta em se mostrar real
(Machado 1984, p. 83). Em plano sequência, ele senta no chão e se reclina na
parede. A câmera se posiciona de maneira frontal e neutra diante do personagem.
Mas logo depois, em contra-plongée,
ele se encontra sentado e declara a sua submissão ao sofrimento. Mais uma vez a
mão retorna ao cenário e mostra conhecer o personagem intimamente, pois ela desliza
sobre o pescoço e o peitoral com propriedade.
Na
cena do quarto, com objetos que chamam a atenção pela beleza da originalidade.
A pessoa que os possui, possivelmente é dotada de instrução. Eles são filmados
em plano sequência, com uma continuidade
exata até chegar ao ponto principal: os pés adormecidos de uma pessoa. Depois
da cena do quarto, o filme retoma a rodovia. Logo, o protagonista dentro do
carro em direção a um terreno. Em plano conjunto, o carro chega ao local
desejado. Ao sair do carro, ele acende um cigarro e caminha em plano conjunto
até se chegar ao plano americano. Alguns flashes surgem durante a cena,
pensamentos do próprio protagonista que entram em transe. Ele, então, senta na
frente do carro como se o local fosse marcado por algum acontecimento ou o
local onde aconteceria algo.
A
visão do carro é tomada de maneira frontal, as luzes dos faróis ofuscam e
saturam a imagem ao se aproximar cada vez mais da câmera, em plano sequência.
Em seguida, as luzes se apagam e uma luz se concentra no volante e mostra, mais
uma vez, a inquietude do personagem na cena: como se algo estivesse errado. Em
plano detalhe, a mão dele na marcha como se indicasse a urgência em tomar uma
decisão. Então, ele arranca o terço pendurado no retrovisor. Esse ato, ao se
debruçar no texto de Lucia Santaella:
Podemos pensar a
questão da representação simbólica em termos das modalidades de registro da
informação com a qual o sujeito psicológico trabalha; das formas de
processamento dessa informação; (...) dos processos de mediação simbólica na
relação entre sujeito e objeto de conhecimento. (SANTAELLA, 1992, p. 52)
Tal
representação simbólica é dotada de suas características, há o “bem” e o “mal”
na religião. O personagem age como sujeito psicológico e social (já que, é
regido pelas regras de uma sociedade de classes e vive, portanto, em meio às
contradições da vida social), não necessariamente coloca em questão os atos
benéficos e malignos do que se pretende fazer, mas ele previamente tem a noção
desses atos, principalmente, se ele arranca um terço (ou crucifixo). Para
Machado (1984, p. 22), “a produção social de signos condensa necessidades,
interesses e estratégias de intervenção de cada estrato social.”. Ficará
subentendido para o telespectador, então, que Miguel realizará um ato que não
condiz com as normas estabelecidas pela instituição, ele quebrará regras, ele
fará algo ruim.
Imediatamente,
na cena em que o carro continua estacionado, o protagonista abre a porta e anda
em direção à parte traseira. O curta-metragem percorre todo o seu enredo com
cenas escuras, talvez queira mostrar, também: a obscuridade dos atos, o
suspense da história, os rastros deixados pelo protagonista e que atos são
cometidos, geralmente, nas madrugadas sem que haja suspeitos. Algumas passagens
possuem tonalidades escuras, mesmo com as chances de serem exibidas claramente
(em locais que possuem grande iluminação, mas prevalece a tonalidade sombria). No
momento em que Miguel está atrás do carro (a câmera continua parada, em
fotografia still) é perceptível, pela
noção do barulho de certos movimentos, que ele anda e carrega ou mexe em algo.
Finalmente
é filmado o protagonista atrás do carro. Todavia, o cenário não é exposto por
completo (por exemplo, não é filmado em um plano geral ou conjunto). A cena
está em primeiro plano, do peito a cabeça. O diretor pretende não mostrar o
objeto principal da cena, e deixa a entender que o protagonista queimou alguma
coisa devido a sua expressão facial, ele franze o rosto como se fosse incômoda
a fumaça, e ao cheiro do que está sendo queimado. Logo, a aparição do fogo
remete ao início do filme. Essa ideia de um espaço que aparentemente existe, mas
não é mostrado pode ser chamado de extraquadro:
A referência a um
espaço ilusório extraquadro pode se dar de várias maneiras, como ocorre, por
exemplo, toda vez que uma figura que está em campo aponta ou remete para algo
fora de campo: esse é o caso da foto de uma mulher com a expressão
aterrorizada, as mãos protegendo o rosto e o olhar fixo em algo que só ela
mesma pode ver. (MACHADO, 1984, p. 83)
Já
nos minutos finais do filme, o carro de Miguel está sendo lavado. Transmite a
ideia de que os resquícios por suas ações serão expurgados.
É sedutora a maneira como o diretor geral,
Rafhael Barbosa, constrói a história. Visto que, em todo o filme não existe
diálogos. Ele usa de maneira apropriada os sons dos objetos nas cenas do filme.
E consegue reforçar a importância da relação do símbolo e do objeto, como
afirma Santaella:
A relação entre o
símbolo e seu objeto se dá através de uma mediação, normalmente uma associação
de ideias que opera de modo a fazer com que o símbolo seja interpretado como se
referindo àquele objeto. (SANTAELLA, 1992, p. 45)
O
curta-metragem é contornado por uma história que não teve resolução, o
personagem sai incólume de seus atos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
1. SANTAELLA, Lucia. Palavra, Imagem
& Enigmas. Revista USP. Dossiê Palavra, Imagem. nº 16. São Paulo: 1992-93
3. MACHADO, Arlindo. A ilusão
especular: introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense/Funarte, 1984.